Por razões que já não recordo

 

Regressamos muito à autobiografia de Luis Buñuel, O Meu Último Suspiro, um tratado das tropelias da criatividade de grupo, e dos limites da vida e do espectáculo, ou entre ambos. Teve uma edição portuguesa, que hoje se perderia entre novelas de mulheres árabes sofredoras, folhetos de auto-ajuda com receitas místicas e dietéticas, manuais de assassínio comercial e romances portugueses no mau sentido dos dois termos.

Temos falado pouco de teatro. Mas a melhor maneira de falar dele é cada vez mais não falar muito.

«… Quanto a La Mort En Ce Jardin, recordo-me sobretudo de problemas dramáticos em relação ao argumento, o que é a pior das coisas. Não conseguia resolvê-los. Muitas vezes, levantava-me às duas horas da manhã para escrever, durante a noite, as cenas que entregava a Gabriel Arout para que ele me pudesse corrigir o francês. Tinha de rodar essas mesmas cenas no próprio dia. Raymond Queneau veio passar quinze dias ao México para tentar, em vão, ajudar-me a sair desta alhada. Recordo ainda o seu humor, a sua delicadeza. Ele nunca dizia: «Não gosto disto, não é bom», mas fazia sempre começar as suas frases por um: «Pergunto-me se…»

Ele foi o autor de uma descoberta engenhosa. Simone Signoret, no papel de uma prostituta que vive numa pequena cidade mineira onde já tinham ocorrido distúrbios, está a fazer as suas compras numa mercearia. Compra sardinhas, agulhas, diversos produtos de que precisa, e, depois, pede um sabão. Nesse momento, ouvem-se os toques de corneta dos soldados que vinham restabelecer a ordem na cidade. Ela muda de repente de opinião e pede cinco sabões.

Infelizmente, por razões que já não me recordo, esta curta cena de Queneau não pôde figurar no filme.

Julgo que Simone Signoret não tinha qualquer desejo de fazer La Mort En Ce Jardin, preferindo ficar em Roma com Yves Montand. Tendo de passar por Nova Iorque a caminho do México, ela introduziu ostensivamente no seu passaporte documentos comunistas, ou soviéticos, na esperança de que as autoridades americanas a mandassem para trás – no entanto, deixaram-na passar sem qualquer comentário.

Como se mostrou bastante turbulenta durante a rodagem do filme, distraindo os outros actores, um dia pedi ao chefe maquinista que pegasse numa fita métrica, medisse uma distância de cem metros a partir da máquina de filmar e instalasse a esta distância os lugares dos actores franceses.

Em contrapartida, graças a La Mort En Ce Jardin conheci Michel Piccoli, que se tornou um dos meus melhores amigos. Fizemos cinco ou seis filmes juntos. Gosto do seu sentido de humor, da sua generosidade secreta, do seu grão de loucura e do respeito que nunca me tem.»

 

Signoret & Piccoli, La Mort En Ce Jardin

 

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