«O teatro é mais honesto» (Manoel de Oliveira)

 

 

«Hoje tenho uma ideia muito diversa da de antigamente. Neste meu último filme, Angélica, até mudei um pouco as ideias do que estava para fazer; foi mais por imposição e interesse do produtor que eu me atrevi e adaptei o filme à realidade. Mas, enfim, porque na verdade a gente chega a estas conclusões, a máquina de filmar… O teatro é mais honesto que o cinema, porque o cinema filma sonhos. Ora a máquina de filmar não pode filmar sonhos, a máquina de filmar não pode filmar pensamentos. No teatro nunca se representa um pensamento, nunca se representa um sonho. O actor chega ao palco e diz “eu sonhei isto e aquilo”. Se é verdade ou mentira, não se sabe. Ou então diz “eu pensei isto ou aquilo”, porque isto não se filma. Por essas razões, mudamos a ideia do contexto do cinema, e por isso acho que o teatro é fundamental. E, para mim, a expressão mais rica é a literatura. Lembro-me de que na Guerra e Paz, um sujeito quando estava para morrer – estava ferido, depois acabou por ficar doente -, estava preocupado em saber o que é a morte. Porque era uma porta por onde ele não entraria. Olhou lá para o fundo da sala e vê uma porta, e diz “Ah, é uma porta.” E eu achei isto admirável: a morte é uma porta. No mundo material, a porta dá para o cemitério. No mundo espiritual, a porta dá para algum lado, ou não.»

 

Entrevista ao Diário de Notícias

 

(Repare-se como, nos comentários à entrevista, na página do jornal, os que objectam ao gasto público no cinema se revelam bem instruídos pelo mesmo manual; dois deles chegam a usar, no seu par de curtas linhas, exactamente as mesmas duas expressões: «contribuintes» para si e para a sua voz colectiva, e «caprichos» para os filmes feitos.)

 

Tarantan

Bananas

Tarantino acha que não seria possível fazer hoje The Dirty Dozen (boa prosódia «pulp», a do título português Doze Indomáveis Patifes). Porque já não há aquele género de actores. Ernest Borgnine. Charles Bronson. Homens a sério. Porque os actores de agora são macios, diz.

Não nos parece prestável o que Tarantino tem feito depois de Jackie Brown, muito menos a convicção que tem de ter “crescido e superado” Godard (mas quem lhe disse que seria capaz de crescer nessa direcção?). Vale na última entrevista ao Guardian o elogio à escrita de Joseph L. Mankiewicz, mesmo se feito à custa de toda a escrita do teatro americano (quem nos dera este tipo de jactância teatral, num meio em que nem os parzinhos de parágrafos das revistas de agenda de espectáculos conseguem ter alguma energia oral, ou conseguem crescer e superar os limites da mera multiplicação do óbvio, para não falar nos limites imaginativos e retóricos da escolaridade obrigatória). Ao menos algum tarantan:

«He could have held the script for All About Eve up against every play ever written for the American stage and said, ‘Suck my dick!’ – It’s that good.»

via Guardian

 

Adeus Vasco Granja

 

Vasco Granja morreu anteontem de madrugada, com 83 anos. A arte do obituário é uma coisa patética, mas a morte de mais um educador artístico não deve deixar-se cair.

Durante anos, uma das polémicas artísticas deste país, talvez a maior, a que formou gerações, foi em redor da escolha de filmes de animação de V.G. para os seus programas: sobre se devia pôr no ar mais filmes da Warner Brothers, da série Looney Tunes, de montagem rápida, banda sonora estridente e humor de choque, ou se tinha o direito de insistir no material de outros mestres, como o checo Jirí Trnka, ou o canadiano Norman McLaren, entre tantos.

 

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Os filmes da Warner já tinham saída na transmissão corrente, e já tinham formado o gosto dominante, aquele mesmo que se alimenta dos filmes-de-acção & catástrofe-com-chacota de um Bruce Willis, ou infinitas variantes dessa variante. O próprio Vasco Granja brincava com a sede de muitos espectadores pelos brinquedos ruidosos, extraordinários, diga-se, mesmo quando apostavam no mecanismo tão televisivo da rotina cómica com estreita variação.

Mas até esses filmes caíram vítimas da psicologia popular de reacção piedosa à «violência» na tv. Nós aqui achamos mais violento que um champô prometa «biovitaminas», e «alimente» o tecido morto do cabelo directamente. Nós aqui só aprendemos com aquela que foi talvez a única sequência sem fuga histriónica de toda essa cinematografia, a famosa noite de insónia do gato Silvester/Silvestre, um momento de Kafka-para-todas-as-criancinhas, que o avô Granja apreciava especialmente.

Não sabemos se Vasco Granja morreu com a mesma sensação de dever cumprido de Mel Blanc, pai da voz de Bugs Bunny & outros, que deixou no seu próprio epitáfio a legenda final desses filmes: That’s All Folks! – ao mesmo tempo uma espécie de «manguito» existencialista.

 

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Mas sabemos que muitos lhe estão gratos como nós. Por ter aberto o ponto de vista, algo de que hoje a nossa televisão foge a sete pés (… eis uma figura animada). Porque, dizem os seus donos, «não têm nada que educar as massas». Nesta fórmula, que F.P. Balsemão usou, está escondido, curiosamente, o eco talvez involuntário de uma caricatura de Vasco Granja, vinda do tempo da guerra fria, de quando o divulgador era visto, sempre com uma bonomia pálida, como uma «espécie de embaixador dos países de Leste».

Por isso escolhemos agradecer especialmente a Vasco Granja a descoberta do insuspeito canadiano Norman McLaren, músico e desenhador, a cujos filmes sonoros, baseados exactamente no mesmo princípio jazzístico dos Looney Tunes, dedicámos uma parte do dia de ontem. No Youtube é possível ver o enérgico «Sinchronomy», bem como «Sinchronomy on Mars» ou «Lignes Verticales/Lines Vertical».

 

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Imagens do filme «Synchronomy», de Norman McLaren.

 

Sexta-feira 13, dia de namorados

 

Amanhã, festeja o rebanho. Hoje, e quando calha, tantas vezes quando não calha mesmo nada, festejam os outros. Festejam é como quem diz. Muitos acham que palavras como «amor» têm um sentido muito claro. É porque não sabem nada de Linguística, disciplina sócio-científica que nos diz que as palavras mais usadas de uma língua são, por isso mesmo, as mais ambíguas, i.e., mais polidas de algum depósito de sentido, e mais facilmente conformadas aos muitos pequenos círculos em que são usadas. Círculos muito pequenos, tantas vezes.

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Para o dia da colectivização da intimidade, escolhemos uma curta-metragem que alguns ainda não viram, felizes de frescos. Podem ir a Zinnaglism, se quiserem perder a frescura.

 

– Have you slept with anyone?
– No. Have you?
(pausa)
– No.
– That was a long pause.
(silêncio)
– I guess it doesn’t really matter.
– No it doesn’t.

[…]
– If we fuck, I’m gonna feel like shit tomorrow.
– That’s okay with me.

 

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Hotel Chevalier, de Wes Anderson, com Natalie Portman e Jason Schwartzman (12:59).

 

Nenhum Sexo Ontem à Noite

 

 

 

A maior parte do tempo a direito, entre entrepostos de serviço automóvel, de serviço de restauração e bebidas, de serviço de alojamento nocturno, e de serviço matrimonial, para um gesto de ficção, ou chamemos-lhe fantasia, conforme a escola estética.

Sigamos Sophie Calle e Greg Shephard a encenarem os bastidores de uma relação, nos bastidores de uma América menos iluminada (filme que teve conversão de DV8 para 35 mm e relançamento internacional com estreia portuguesa pela mão do produtor Paulo Branco, ocasião em que mudou de nome, de Double-Blind para No Sex Last Night).

 

Ligação ao fundo.

Disponível em Ubuweb.

 

Opiário

[revisto]

Quem pesquisar games waste of time vai encontrar enormes quantidades de sugestões de um género particular de jogos electrónicos, ultra-leves, que se gabam de fazer desperdiçar o tempo eficazmente.

 

 

As velhas fotografias dos pavilhões de ópio do século XIX, cheias de homens (e mulheres, nas salas e caves clandestinas de Nova Iorque e São Francisco, ou Sidney) de olhos vidrados, em posição fetal, não tombaram no passado. Estão aqui, com a sua aura e vórtice de fibra óptica.

A caminho de ver um amigo há muito distante, com quem tínhamos partilhado um concerto do guitarrista norueguês Terje Rypdal, fomos procurar um disco do músico na FNAC, de passagem.

Ali, o cinema e a música estão a sofrer uma razia de quantidade, e o desastre, na escolha e ordem. A mostra passou de fraca a aleatória. Os discos de cinema e os de música e vídeo musical migraram e juntaram-se, e a maior clareira é agora dedicada aos jogos de computador e às suas máquinas caras.

A loja que engoliu as outras lojas está confusa. Assente a moda de que os suportes materiais de música e vídeo podem ser substituídos pelo fumo do tráfego digital (e fugidos muitos dos que não pensam assim para a encomenda directa, ou para uma ou outra pequena loja temática) o grande retalhista parece acreditar que pode vender mais jogos em suporte físico. Será por pouco tempo.

Evaporados os narcóticos jogos para o trânsito virtual, vai sobrar muito espaço na loja. Ficarão só as máquinas. Depois trazem-se uns tapetes, e umas enxergas e colchas, para conforto dos experimentadores dos terminais e suas miragens de fogo, vertigem e repetição. Depois umas cortinas, contra a crua luz do dia…

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(Este texto acabou por ser escrito num dia obscuro em que nos perdemos no labirinto da loja em questão e acabámos por imaginar que a secção de cinema era ainda mais pequena do que de facto é. Mas, também de facto, está mais pequena do que já foi. Nos dias obscuros cai-se para fora da rotina, e pode ver-se a sombra que o presente larga para diante. Enfim. Comprámos um disco: de Rabih Abou-Khalil: “em português“, do músico libanês com o fadista Ricardo Ribeiro, & Luciano Biondini, Michel Godard e Jarrod Cagwin; Enja Records, 2008).

 

Por razões que já não recordo

 

Regressamos muito à autobiografia de Luis Buñuel, O Meu Último Suspiro, um tratado das tropelias da criatividade de grupo, e dos limites da vida e do espectáculo, ou entre ambos. Teve uma edição portuguesa, que hoje se perderia entre novelas de mulheres árabes sofredoras, folhetos de auto-ajuda com receitas místicas e dietéticas, manuais de assassínio comercial e romances portugueses no mau sentido dos dois termos.

Temos falado pouco de teatro. Mas a melhor maneira de falar dele é cada vez mais não falar muito.

«… Quanto a La Mort En Ce Jardin, recordo-me sobretudo de problemas dramáticos em relação ao argumento, o que é a pior das coisas. Não conseguia resolvê-los. Muitas vezes, levantava-me às duas horas da manhã para escrever, durante a noite, as cenas que entregava a Gabriel Arout para que ele me pudesse corrigir o francês. Tinha de rodar essas mesmas cenas no próprio dia. Raymond Queneau veio passar quinze dias ao México para tentar, em vão, ajudar-me a sair desta alhada. Recordo ainda o seu humor, a sua delicadeza. Ele nunca dizia: «Não gosto disto, não é bom», mas fazia sempre começar as suas frases por um: «Pergunto-me se…»

Ele foi o autor de uma descoberta engenhosa. Simone Signoret, no papel de uma prostituta que vive numa pequena cidade mineira onde já tinham ocorrido distúrbios, está a fazer as suas compras numa mercearia. Compra sardinhas, agulhas, diversos produtos de que precisa, e, depois, pede um sabão. Nesse momento, ouvem-se os toques de corneta dos soldados que vinham restabelecer a ordem na cidade. Ela muda de repente de opinião e pede cinco sabões.

Infelizmente, por razões que já não me recordo, esta curta cena de Queneau não pôde figurar no filme.

Julgo que Simone Signoret não tinha qualquer desejo de fazer La Mort En Ce Jardin, preferindo ficar em Roma com Yves Montand. Tendo de passar por Nova Iorque a caminho do México, ela introduziu ostensivamente no seu passaporte documentos comunistas, ou soviéticos, na esperança de que as autoridades americanas a mandassem para trás – no entanto, deixaram-na passar sem qualquer comentário.

Como se mostrou bastante turbulenta durante a rodagem do filme, distraindo os outros actores, um dia pedi ao chefe maquinista que pegasse numa fita métrica, medisse uma distância de cem metros a partir da máquina de filmar e instalasse a esta distância os lugares dos actores franceses.

Em contrapartida, graças a La Mort En Ce Jardin conheci Michel Piccoli, que se tornou um dos meus melhores amigos. Fizemos cinco ou seis filmes juntos. Gosto do seu sentido de humor, da sua generosidade secreta, do seu grão de loucura e do respeito que nunca me tem.»

 

Signoret & Piccoli, La Mort En Ce Jardin

 

Curtas Promessas de Viagem

 

 

Os pacotes Nicola são intrigantes. Sob o mote «Um dia…», os amigos do café podem escrever para um endereço electrónico e candidatar uma pequena redacção com uma promessa a si próprios ou a terceiros, a imprimir num pacote.

Os pacotes Nicola são intrigantes porque nunca lemos uma mensagem honesta. A absoluta falta de sentido de humor das mensagens é que é cómica. Não se podem esperar grandes rasgos de um pacote de açúcar português.

Rui Oliveira promete vagamente a alguém uma deslocação de 300 Km. Um dia. Tendo em conta a evidente necessidade de regresso, Rui pode mesmo estar apenas a prometer, com alguma cobardia, uma única deslocação num raio de 150 Km, provavelmente por autoestrada.

Uma única deslocação. A relação assim possível teria de ser um golpe inolvidável. Um golpe tal que fizesse Rui Oliveira preferir não encontrar a quem prometeu. Tantos o fazem. Rui Oliveira não sabe que não é excepção. Uma relação que nenhuma série de pacotes pudesse açucarar.

 

 

“Põe um tigre no meu motor”. “Nós aqui não vendemos tigres”. “Então põe gasolina e cala-te, meu caro”.

 

 

Porém, mesmo que 300 Km seja na frase apenas a distância de referência, contada no mapa ou no GPS (que Rui com certeza escolheu, de entre os 35 modelos em promoção de 5 a 10 por cento, ainda assim dez vezes mais caros que as Obras Completas de Shakespeare, edição Riverside, ou ao preço de uma boa bicicleta, por exemplo, e pronto a ser desligado porque o prazer de conduzir não tem nada a ver com o prazer de ser conduzido por uma espécie de gravador que só constata evidências e mata toda a descoberta, todo o erro), como explicar a um português que 300 Km não são uma grande distância, e não justificam a demora e a separação, e até adiamento, implícitos na mensagem?

 

 

Para que buscamos alguém, Rui, senão para podermos errar?

300 Km não são uma grande distância. Mas, para o português presente, que faz contas à gasolina sem nunca ter feito contas às estradas que andaram a ser construídas para gastos de combustível incomportáveis, 300 Km parecem ser o horizonte do sonho, a declarar num pacote de açúcar. Os fazedores de estradas é que alimentam a fantasia, por cá. E, vistas as contas desses contratos que o povo que despreza as artes que recebam apoios nunca fiscaliza, com os seus prémios e contrapartidas, vemos quem são os verdadeiros subsidiados.

Quem faz 300 Km não faz coisa nenhuma, Rui.

 

 

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Autêntico pacote Nicola.

Fotogramas de Pierrot le Fou, de Jean-Luc Godard, grande destino de Verão.

 

Tenho inveja

 

«Tenho inveja dos que não valem nada, ou não valem grande coisa.»

Maurice Pialat

 

Le peu de temps qui me reste à faire des trucs – si j’en fais encore -, j’aimerais cesser d’être velléitaire et essayer de faire passer des choses à la hauteur des capacités que je crois avoir et qu’on ne sente pas l’effort derrière. C’est un gros boulot. Ça m’est arrivé par éclats. Dans la première heure de Police par exemple, où il y a un nombre incroyable de mouvements de caméra qu’on ne voit pas. Dans la plupart des films, les mouvements de caméra, on ne voit que ça. Et on continue à trouver que les gens qui font des mouvements de caméra voyants sont des virtuoses alors que c’est la chose la plus facile au monde.

Généralement, les gens sont jaloux de ceux qui ont plus qu’eux : plus de talent, plus d’argent, la belle bagnole. Moi, je suis jaloux de ceux qui ne valent rien ou pas grand-chose.

 

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No Youtube, três cenas cheias de ilusão cinematográfica de contracena e verdadeira contracena, em tempo dramático real, do filme Police:

A / B / C

Pialat na rua: acção “wheatpaste”, pasta de farinha, colagem clandestina de um cartaz de Pialat com mensagem.

Texto em francês: Pialat em entrevista a Les Inrockuptibles, no único portal dedicado, infelizmente inerte.

 

Todos Terão o Seu Fim

 

Viemos de ver De Man Zijn Haar Koort Liet Knippen (“O Homem da Cabeça Rapada”), de André Delvaux, no princípio do mês, com a ideia de escrever aqui sobre o filme, mas não o fizemos. O comentador da folha da Cinemateca tinha optado pelo mesmo. Algumas referências cinéfilas evocadas em círculo, pouco mais.

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A folha de sala gastava o nome de Murnau, mas não lembrava forças estritamente visuais como a pintura de James Ensor, ou, na continuação, Blue Velvet de David Lynch, com os seus insectos a marulharem na terra e a sua orelha cortada em cima de um tabuleiro de aço.

O Homem da Cabeça Rapada costuma ser tratado como um drama psicológico, a história de qualquer coisa a que chamam desagregação, por exemplo. Mas depois a desagregação é contada de uma forma tão linear e articulada que qualquer um terá medo de sofrê-la também, a caminho do Minipreço, sem poder regressar à vida vulgar.

Na festa de fim de curso de um liceu, depois de uma sessão solene cadavérica, uma finalista canta “A canção da vida verdadeira”. Um homem torturado de ansiedade olha-a dos bastidores. É um dos mestres. Um pouco antes, o barbeiro tinha-lhe tesourado o cabelo, vaporizado, secado a vento, e massajado o crânio com a ajuda de uma maquineta eléctrica.

A sensação, depois da massagem, tinha dito o barbeiro, ia ser gloriosa.

O filme leva-nos depois por um caminho cinzento e lento que Tarantino ensinou às massas com Pulp Fiction, mas com música que bate no estômago e personagens em delírio retórico, a saber: que em cinema é menos a sequência que narra do que o ponto de vista. Vemos por outros olhos, ou de onde mais ninguém vê, e vemos o que não veríamos, e quando não seria de ver. E movemo-nos no tempo como no espaço, à margem dos factos.

Já ninguém se lembra, porque já toda a gente cresceu, ou esqueceu, mas saíam muitos do filme de Tarantino a usar o tal verbo: não tinham percebido nada. Não tinham percebido “a ordem das cenas”. O que não tinham percebido é maquinal: do ponto de vista de quem é que tinham visto a história, contada mais que uma vez.

O truque é tão velho como os romances epistolares, em que cada cortesão vê pelo seu prisma a mentira e a verdade dos outros, e as suas.

Mais perto do cinema, aquele é um truque convencional da literatura pulp, mas também da narrativa épica-jornalística de um Norman Mailer, que, em The Executioner’s Song (“A Canção do Carrasco”), molda o discurso sempre económico e apontado do narrador à personagem mais influente de cada um dos muitos capítulos, ao seu modo de ver e modo de dizer. Mas o que tem sido prático em literatura parece ser um problema para as massas de uma arte ao mesmo tempo demasiado nova e vulgarizada, que, segundo alguns, Godard, Lynch ou Sokurov, ainda nem sequer achou a linguagem própria.

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Voltámos do último filme dos Coen, No Country For Old Men, a pensar nos maus tratos que uma obra visual pode sofrer, entregue a quem já não se emociona com imagens. “Não percebi o final”, foi a primeira coisa que uma fulana espectadora ao nosso lado disse (tinha entrado no filme a mandar um sms). Decidimos não passar o nosso entusiasmo pelo filme para este blogue depois de termos reparado que, no Google, havia 7.620.000 textos que se intitulavam «críticas (reviews)» do filme, e 5.010.000 dedicados ao tema do «final (ending)». Dizia um site semi-profissional:

With the increased scrutiny which comes with the honor [Oscar], No Country… can be questioned for its lack of a discernible message and indecisive ending.

Não vamos especular também aqui. Ficámos a saber que muitos já não entendem o que é um epílogo, não sabem que uma história pode acabar antes das últimas cenas. E que muitos não estão prontos para um romance, e bastam-lhes histórias exemplares (“discernible message“), para usar velhos termos da literatura. É o mundo, afinal, daquela apresentadora de notícias que questionava o prémio Grammy entregue a Amy Winehouse: «Não sei se é este o exemplo que queremos dar com a música». Que música é que tu tocas, Lady-laca? Dá-me o teu exemplo.

A personagem de Javier Bardem, um assassino com um gosto por uma máquina de matar gado e feroz crítico social (ah, a cena da loja do posto de gasolina) já disse tudo, na resposta que tem para quando lhe pedem misericórdia: «Você não precisa de fazer isto».

«Mas porque é que dizem todos a mesma coisa?»

O melhor comentário que temos a deixar a No Country For Old Men é um poema com a mesma arte de lembrar sucessivos guerreiros e seus feitos, entre justos e vilões. De Bertolt Brecht. O poema lembra a montagem do filme, quando um golpe de surpresa banal conclui um duelo, ou, ao virar da esquina, uma personagem que chamava o nosso afecto já caiu de vez.

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PLACA COMEMORATIVA PARA 9 CAMPEÕES DO MUNDO

 

Aqui vai a história dos campeões do mundo de pesos médios
Dos seus combates das suas carreiras
Desde 1884
Até aos nossos dias.

Começo a série pelo ano de 1884
Quando os combates iam além de 50 ou 70 rounds
E só acabavam com o K.O.
E por Jack Dempsey
Vencedor de Georges Fulljames
O maior boxeur dos tempos do boxe bruto
Vencido por

Bob Fitzimmons, pai do boxe técnico
Detentor do título mundial de pesos médios
E de pesos pesados
Graças à sua vitória de 17.3.1897 sobre Jim Corbet.
34 anos de ring e apenas 6 derrotas.
Bob foi tão temido que em todo o ano de 1889
Não houve adversário para ele. Só em 1914,
Com 51 anos feitos, travou
Os dois últimos combates.
Um homem sem idade.
Em 1905, Bob Fitzimmons perdeu o título para
Jack O’brien, dito Philadelphia Jack.
Jack O’brien começou a carreira
Aos 18 anos
Disputou mais de 200 combates.
Nunca
Philadelphia Jack se preocupou com o dinheiro
Partia do princípio
Que é no ring que se aprende
E enquanto aprendeu sempre venceu.
A sua derrota com o peso pesado Tommy Burns,
Jack O’brien, já a caminho da sua velhice, dizia-a
A luta da sua vida.
E na verdade os seus combates posteriores
Não tiveram qualquer importância.

A Jack O’brien sucedeu
Stanley Ketchel
Célebre por 4 verdadeiras batalhas
Que travou com Billie Papke
E por ser o mais bruto boxeur de todos os tempos.
Foi abatido pelas costas aos 23 anos
Num sorridente dia de Outono
Quando estava sentado diante da sua quinta
Invicto.

Continuo o meu relatório com
Billie Papke
Primeiro génio do infighting.
O maior combate de Billie
Foi a famosa desforra contra Stanley Ketchel
– O combate dos combates.
Ouviu-se então pela primeira vez a expressão:
Máquina humana de boxe.
Como uma máquina
O bruto Ketchel socou Billie
Até lhe fazer sair o coração do peito.
Mas nesse dia Billie foi grande,
Classe fora de série: imbatível.
Mal se tendo nas pernas
Pôs a K.O. Ketchel, o dos punhos de ferro.
Esta grande vitória abalou no entanto o coração do grande Billie.
Ainda conseguiu liquidar Hugo Kelly
Ao primeiro round.
Tal como o furação que sobre os campos cai
Caiu Billie sobre Kelly.
Mas no último combate contra Ketchel
O rei dos pesos médios acabou com
O que ainda restava do grande coração de outrora.
E num combate com Frank Klaus
Em Paris, em 1913,
Foi batido
Por um maior do que ele na arte do infighting.
Klaus manteve sempre Billie colado às cordas
Depois Billie desafiou-o
A bater-se como um homem.
Ao 15º round era um homem
Vencido.

Frank Klaus, seu sucessor, travou combates com
Os maiores pesos médios do seu tempo:
Jim Gardener, Billie Berger,
Willie Lewis,
Jack Dillon, e
Georges Carpentier que, ao lado dele, se mostrava fraco como um menino.
Frank Klaus era mestre no combate de perto, corpo a corpo,
Sabia pôr todo o peso nos golpes.

Bateu-o
George Chip
Que fora disso nunca conseguiu fazer nada de notável
E foi batido por

Al Mac Coy
O pior dos campeões dos pesos médios
– Só sabia apanhar.
Finalmente, em 1917,
Mike O’Dowd mandou para o tapete
Esse crânio de ferro
E arrancou-lhe o título.

 

in Poemas, Bertolt Brecht, Editorial Presença,
trad. Arnaldo Saraiva e Sylvie Deswarte