Todos Terão o Seu Fim

 

Viemos de ver De Man Zijn Haar Koort Liet Knippen (“O Homem da Cabeça Rapada”), de André Delvaux, no princípio do mês, com a ideia de escrever aqui sobre o filme, mas não o fizemos. O comentador da folha da Cinemateca tinha optado pelo mesmo. Algumas referências cinéfilas evocadas em círculo, pouco mais.

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A folha de sala gastava o nome de Murnau, mas não lembrava forças estritamente visuais como a pintura de James Ensor, ou, na continuação, Blue Velvet de David Lynch, com os seus insectos a marulharem na terra e a sua orelha cortada em cima de um tabuleiro de aço.

O Homem da Cabeça Rapada costuma ser tratado como um drama psicológico, a história de qualquer coisa a que chamam desagregação, por exemplo. Mas depois a desagregação é contada de uma forma tão linear e articulada que qualquer um terá medo de sofrê-la também, a caminho do Minipreço, sem poder regressar à vida vulgar.

Na festa de fim de curso de um liceu, depois de uma sessão solene cadavérica, uma finalista canta “A canção da vida verdadeira”. Um homem torturado de ansiedade olha-a dos bastidores. É um dos mestres. Um pouco antes, o barbeiro tinha-lhe tesourado o cabelo, vaporizado, secado a vento, e massajado o crânio com a ajuda de uma maquineta eléctrica.

A sensação, depois da massagem, tinha dito o barbeiro, ia ser gloriosa.

O filme leva-nos depois por um caminho cinzento e lento que Tarantino ensinou às massas com Pulp Fiction, mas com música que bate no estômago e personagens em delírio retórico, a saber: que em cinema é menos a sequência que narra do que o ponto de vista. Vemos por outros olhos, ou de onde mais ninguém vê, e vemos o que não veríamos, e quando não seria de ver. E movemo-nos no tempo como no espaço, à margem dos factos.

Já ninguém se lembra, porque já toda a gente cresceu, ou esqueceu, mas saíam muitos do filme de Tarantino a usar o tal verbo: não tinham percebido nada. Não tinham percebido “a ordem das cenas”. O que não tinham percebido é maquinal: do ponto de vista de quem é que tinham visto a história, contada mais que uma vez.

O truque é tão velho como os romances epistolares, em que cada cortesão vê pelo seu prisma a mentira e a verdade dos outros, e as suas.

Mais perto do cinema, aquele é um truque convencional da literatura pulp, mas também da narrativa épica-jornalística de um Norman Mailer, que, em The Executioner’s Song (“A Canção do Carrasco”), molda o discurso sempre económico e apontado do narrador à personagem mais influente de cada um dos muitos capítulos, ao seu modo de ver e modo de dizer. Mas o que tem sido prático em literatura parece ser um problema para as massas de uma arte ao mesmo tempo demasiado nova e vulgarizada, que, segundo alguns, Godard, Lynch ou Sokurov, ainda nem sequer achou a linguagem própria.

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Voltámos do último filme dos Coen, No Country For Old Men, a pensar nos maus tratos que uma obra visual pode sofrer, entregue a quem já não se emociona com imagens. “Não percebi o final”, foi a primeira coisa que uma fulana espectadora ao nosso lado disse (tinha entrado no filme a mandar um sms). Decidimos não passar o nosso entusiasmo pelo filme para este blogue depois de termos reparado que, no Google, havia 7.620.000 textos que se intitulavam «críticas (reviews)» do filme, e 5.010.000 dedicados ao tema do «final (ending)». Dizia um site semi-profissional:

With the increased scrutiny which comes with the honor [Oscar], No Country… can be questioned for its lack of a discernible message and indecisive ending.

Não vamos especular também aqui. Ficámos a saber que muitos já não entendem o que é um epílogo, não sabem que uma história pode acabar antes das últimas cenas. E que muitos não estão prontos para um romance, e bastam-lhes histórias exemplares (“discernible message“), para usar velhos termos da literatura. É o mundo, afinal, daquela apresentadora de notícias que questionava o prémio Grammy entregue a Amy Winehouse: «Não sei se é este o exemplo que queremos dar com a música». Que música é que tu tocas, Lady-laca? Dá-me o teu exemplo.

A personagem de Javier Bardem, um assassino com um gosto por uma máquina de matar gado e feroz crítico social (ah, a cena da loja do posto de gasolina) já disse tudo, na resposta que tem para quando lhe pedem misericórdia: «Você não precisa de fazer isto».

«Mas porque é que dizem todos a mesma coisa?»

O melhor comentário que temos a deixar a No Country For Old Men é um poema com a mesma arte de lembrar sucessivos guerreiros e seus feitos, entre justos e vilões. De Bertolt Brecht. O poema lembra a montagem do filme, quando um golpe de surpresa banal conclui um duelo, ou, ao virar da esquina, uma personagem que chamava o nosso afecto já caiu de vez.

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PLACA COMEMORATIVA PARA 9 CAMPEÕES DO MUNDO

 

Aqui vai a história dos campeões do mundo de pesos médios
Dos seus combates das suas carreiras
Desde 1884
Até aos nossos dias.

Começo a série pelo ano de 1884
Quando os combates iam além de 50 ou 70 rounds
E só acabavam com o K.O.
E por Jack Dempsey
Vencedor de Georges Fulljames
O maior boxeur dos tempos do boxe bruto
Vencido por

Bob Fitzimmons, pai do boxe técnico
Detentor do título mundial de pesos médios
E de pesos pesados
Graças à sua vitória de 17.3.1897 sobre Jim Corbet.
34 anos de ring e apenas 6 derrotas.
Bob foi tão temido que em todo o ano de 1889
Não houve adversário para ele. Só em 1914,
Com 51 anos feitos, travou
Os dois últimos combates.
Um homem sem idade.
Em 1905, Bob Fitzimmons perdeu o título para
Jack O’brien, dito Philadelphia Jack.
Jack O’brien começou a carreira
Aos 18 anos
Disputou mais de 200 combates.
Nunca
Philadelphia Jack se preocupou com o dinheiro
Partia do princípio
Que é no ring que se aprende
E enquanto aprendeu sempre venceu.
A sua derrota com o peso pesado Tommy Burns,
Jack O’brien, já a caminho da sua velhice, dizia-a
A luta da sua vida.
E na verdade os seus combates posteriores
Não tiveram qualquer importância.

A Jack O’brien sucedeu
Stanley Ketchel
Célebre por 4 verdadeiras batalhas
Que travou com Billie Papke
E por ser o mais bruto boxeur de todos os tempos.
Foi abatido pelas costas aos 23 anos
Num sorridente dia de Outono
Quando estava sentado diante da sua quinta
Invicto.

Continuo o meu relatório com
Billie Papke
Primeiro génio do infighting.
O maior combate de Billie
Foi a famosa desforra contra Stanley Ketchel
– O combate dos combates.
Ouviu-se então pela primeira vez a expressão:
Máquina humana de boxe.
Como uma máquina
O bruto Ketchel socou Billie
Até lhe fazer sair o coração do peito.
Mas nesse dia Billie foi grande,
Classe fora de série: imbatível.
Mal se tendo nas pernas
Pôs a K.O. Ketchel, o dos punhos de ferro.
Esta grande vitória abalou no entanto o coração do grande Billie.
Ainda conseguiu liquidar Hugo Kelly
Ao primeiro round.
Tal como o furação que sobre os campos cai
Caiu Billie sobre Kelly.
Mas no último combate contra Ketchel
O rei dos pesos médios acabou com
O que ainda restava do grande coração de outrora.
E num combate com Frank Klaus
Em Paris, em 1913,
Foi batido
Por um maior do que ele na arte do infighting.
Klaus manteve sempre Billie colado às cordas
Depois Billie desafiou-o
A bater-se como um homem.
Ao 15º round era um homem
Vencido.

Frank Klaus, seu sucessor, travou combates com
Os maiores pesos médios do seu tempo:
Jim Gardener, Billie Berger,
Willie Lewis,
Jack Dillon, e
Georges Carpentier que, ao lado dele, se mostrava fraco como um menino.
Frank Klaus era mestre no combate de perto, corpo a corpo,
Sabia pôr todo o peso nos golpes.

Bateu-o
George Chip
Que fora disso nunca conseguiu fazer nada de notável
E foi batido por

Al Mac Coy
O pior dos campeões dos pesos médios
– Só sabia apanhar.
Finalmente, em 1917,
Mike O’Dowd mandou para o tapete
Esse crânio de ferro
E arrancou-lhe o título.

 

in Poemas, Bertolt Brecht, Editorial Presença,
trad. Arnaldo Saraiva e Sylvie Deswarte

Sentir é o Mais Complicado

 

Desculpem a pausa. Parámos para trabalhar (digamos assim), para voltar a ver A Arca Russa, de Alexander Sokurov, e para ver se o Hotel Netto, na Vila de Sintra, ainda não caiu. O livrinho castanho, que a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema editou, dedicado a Sokurov, vai bem no bolso para todo o lado. “O problema é sentir. Sentir é o mais complicado”.

 

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Como reage à exibição dos seus filmes no Ocidente?

No início sentia imenso apreço por tudo e todos: espectadores, directores de festivais, funcionários. Depois comecei a arrepender-me, porque às vezes, no Ocidente, vejo reacções muito estranhas. Por exemplo, pessoas a rir. Claro que percebo que os ocidentais são muito diferentes e muito sós, ao mesmo tempo. Muito mais sós do que na Rússia. Diria mesmo espiritualmente mais doentes, com valores morais obviamente muito diferentes dos da Rússia. Por isso me sinto ainda mais agradecido a alguém que veja os meus filmes, porque presencia então um mundo tão diferente e tenta percebê-lo e aceitá-lo. Mesmo assim, no Ocidente, vive-se uma vida que eu nunca compreenderei.

(Entrevista a Paul Schrader, no livro castanho)

 

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O tempo nunca pára. A época de Pedro o Grande ainda não parou. Podemos sempre imaginar que estamos nesse tempo, porque o ramo desse tempo ainda está a crescer. O mundo, na minha imaginação, é como uma árvore. Somos todos células nessa árvore, e vamos em movimento por ela. Nós russos estamos muito mais perto do nosso passado do que os ingleses estão dos tempos vitorianos. O nosso passado ainda não se tornou passado – o maior problema deste país é que não sabemos quando se tornará passado.

(Ao Guardian Unlimited, a propósito d’A Arca Russa)

 

Ubuweb, «O Youtube Dos Inteligentes»

 

Ubuweb é uma cinemateca/videoteca e audioteca digital.
Ou, numa definição para a próxima época balnear, é o Youtube dos inteligentes.
Este post é apenas uma introdução turística e misturada a um longo percurso, de muitos que o leitor fará, e que faremos aqui muitas vezes.

[Os links desta página para UbuWeb foram corrigidos desde a publicação deste post, e ligam às páginas de origem dos vídeos em vez de ligarem a cada vídeo directamente, por essas ligações se terem mostrado instáveis.]

 

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Samuel Beckett é a face que identifica o site, na página de abertura, e o seu Film, com o actor mais sério do mundo, Buster Keaton, pode ser um bom passo de entrada. Quem sente que «já viu» não volte a ver. Não volte a ver nada. Não volte a casa.
À esquerda da página de abertura, está a lista das áreas do site, cada uma um site por si: conceptual writing, contemporary, mp3 archive, etc, para lá dos centrais Film & Video e Sound que nos ocupam agora.
Também há uma lista dos parceiros de UbuWeb – cada qual uma biblioteca de recursos a explorar.

Na página Film & Video, o nome de Samuel Beckett vem numa já enorme lista de autores de filmes, ou de artistas que são assunto de documentários.
Na página de imagens de Beckett, Film tem, por agora, uma companhia: Not I, pela actriz Billie Whitelaw, com introdução da própria, num mini-documentário… «It is not possible, but he wanted you to be perfect».
Billie conta como, durante a carreira do espectáculo que montou com Beckett, foram tiradas as lâmpadas do corredor da sala e dos sanitários, para não haver fugas à boca inquieta. (Consegue-se no Youtube um «take» só com a peça, desta mesma versão cénica).

 

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Na zona sonora do site – UbuWeb: Sound – outro bom achado será o triste-cómico A Piece of Monologue, pelo actor David Warrilow (que tive o prazer de uma vida de ver em Krapp’s Last Tapes). Eis um trabalho com todo o pigarro da paleta, com a fala não-verbal da garganta que não vem no papel. Neste sentido, os actores que foram dirigidos por Beckett e as suas gravações também são texto.
(A peça Krapp´s Last Tapes também está disponível em UbuWeb, em dois ficheiros mp3, pelo actor Donald Davis. A versão com o actor Jim Norton, da Naxos Audiobooks, junta o grande trabalho do actor a uma maior clareza «cénica» da produção sonora. Na Amazon.uk também pode ver-se uma das páginas cheias de registos sonoros de textos de Beckett.)

Outro passo ritual será ir ver Un Chien Andalou (nos formatos .avi ou .mpg). Eis uma passagem da biografia de Luís Buñuel, O Meu Último Suspiro, um dos mais ofegantes livros de histórias pessoais jamais escritos (que comprei a peso numa «venda de existências»):

Esta primeira exibição de Un Chien Andalou foi organizada com convites pagos no Ursulines e reuniu o que se chamava então a fina flor de Paris, isto é, alguns aristocratas, alguns escritores ou pintores já célebres (Picasso, Le Corbusier, Christian Bérard, o músico Georges Auric) e, claro, também todo o grupo surrealista.
Bastante nervoso, como se pode imaginar, fiquei atrás do ecrã com um gramofone e, durante a projecção, fiz alternar tangos argentinos e Tristão e Isolda. Colocara algumas pedras dentro dos meus bolsos, para lançá-las sobre a assistência, em caso de falhanço. Alguns tempos antes, os surrealistas haviam apupado La Coquille et le Clergyman, um filme de Germaine Dulac (com um argumento de Antonin Artaud) que, no entanto, me agradara. Esperava o pior.
As minhas pedras não foram necessárias. No fim do filme, atrás do ecrã, ouvi os aplausos prolongados e desembaracei-me discretamente dos meus projécteis, atirando-os para o chão.

(Germaine Dulac tem uma secção em UbuWeb que inclui La Coquille et le Clergyman, de 1926. Buñuel tinha razão.)

Noutra zona do mapa artístico, mas no mesmo primeiro e largo patamar da invenção da linguagem própria do cinema, UbuWeb oferece as curtas metragens de Maya Deren. Os curtos filmes coreográficos de Deren são o sabão macaco que faz falta aos olhos de muito supervídeo.

 

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Rasgamos o tempo para três destaques de objectos mais recentes:

1: Der Tod der Maria Malibran, de Werner Schroeter, 1972.
2: Anthem, de Bill Viola, 1983.
3: Stigmata, de Beth B, 1991.

Schroeter partiu da lenda de Maria Malibran – uma diva do século XIX a quem a máxima popularidade levou à morte por esgotamento – para fazer uma série de quadros, no sentido cénico e pictórico do termo, em que busca os extremos da canção tocante e da expressão emotiva em palco. Este é o grande cabaret da ópera. Aqui a ópera sobe mais alto que a grande altura, para ser maior a queda. (Um bom antídoto para os preciosismos da melomania romântica em estilo Antena 2, ou, para quem gosta de uma veia mais ideológica, segundo Amos Voguel, numa nota ao filme na própria página: «um destronar da ópera e uma rejeição metafórica da sociedade burguesa»).
Outro excesso romântico, este tipo de opinião. Como diria (mais adiante) Francis Bacon, o intelecto fica para trás na reacção a este filme, porque este filme cria imagens que ele não seria capaz de criar.
Ao som de discos gastos de ópera, canções românticas, blues ou monólogos de Hamlet, acumulam-se imagens de sofrimento com falsas dobragens do canto e da declamação, e, num grau sempre incerto, falsas dobragens dos gestos e das expressões da emoção aguda. Schoroeter consegue, seguindo no fio da navalha do exagero, voltar a comover, depois de toda a ênfase já se ter despedaçado. Como o consegue é um dos mistérios de assistir àquela coisa.

 

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Bill Viola compõe, em Anthem [Hino], um corte horizontal de uma cidade e da sua vida maquinal e humana, num vídeo guiado pelas torções de um grito.

Beth B, artista plástica e cineasta, põe-nos de frente a uma série de depoimentos de vários homens e mulheres sujeitos a um esforço de clareza tão impressionante como os factos das histórias pessoais que estão a narrar. São os seus «Estigmas». Para um actor – para todos os que se sentem a «actuar» – será como um intervalo no ruído pessoal seguir o compasso daquelas falas, as pausas, os arranques, as escolhas de palavras. A dor como prosódia.

 

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UbuWeb também liga o trabalho de Beth B a uma secção dedicada a todo o grupo do «Cinema of Transgression», do qual também oferece uma antologia (Manifesto disponível na Wikipédia, com caminhos relacionados, ou na própria página UbuWeb dedicada ao grupo).
Mudando o registo para o documentário mais documental, Ubuweb também proporciona o reencontro com um grande documentário de pintura (feito em 1985), dos tempos de um bom Canal 2 da RTP: o documentário-entrevista de Melvyn Bragg com o pintor Francis Bacon, da série «South Bank». A conversa entre os dois é de uma prontidão e de uma naturalidade capazes de ensinar muita gente da tv a falar de artes, em vez de enfeitarem oralmente com termos recomendáveis. Ali não há «cumplicidades», nem «transposições», nem «mensagens».

Há uma conversa à mesa de café sobre o acaso, ou mesmo a sorte, na pintura:
«Why is chance more important than conscious intellect?»
«Because I’ve made images that intellect could never make».

 

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Conhecemos o estúdio de Bacon e o seu Pub também, com toda a sua gente. Os lugares e os materiais do trabalho. E, por exemplo, a história da opinião sobre Jackson Pollock:
«O Pollock lá na América é uma espécie de herói nacional. Uma vaca que trabalhava para uma coisa qualquer veio perguntar-me o que é que eu achava. Disse-lhe que me pareciam rendas velhas. Aquilo caiu muito mal. Desde essa altura não gostam de mim na América».

Voltando a mudar de registo, por fim, Alexander Sokurov. Drama Pessoal tinha prometido apontar onde está a sua «Sonata para Hitler». Sonata dlya Glitera, de 1979-89.

 

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A Cabeça Que Apaga

No regresso de Eraserhead, de David Lynch (no ecrã frontal do cinema Nimas até 20 de Dezembro), guardo uma fotografia com os olhos de ver o pesadelo. Quinze espectadores, dos quais cinco saíram a meio, mais ou menos quando o filho incompleto fica doente. Lynch teria ficado satisfeito com a proporção. «My cow is not pretty, but it is pretty to me.»

 

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Voltei a lembrar-me do pombo doente do dia anterior, depenado e parado, à espera.

Chamam-lhes muito «animais nojentos». Não gosto da mórbida ânsia de limpeza, e muito menos daquele nome – o mesmo que polacos, ciganos, judeus e russos tiveram em alemão nos anos 30-40 do século XX. Sou urbano (para além de polaco, cigano, judeu e russo), e os animais não os vejo como conta e peso. Um animal que morre no meio de nós é sempre uma caricatura humana.

(Há um ou dois anos, numa cidade alentejana, um autarca decidiu exterminar os pombos e contar votos entre a maioria dos velhos. Os pombos seriam adormecidos com narcolépticos e depois congelados. Diz uma mulher: «Tenho tido umas faltas de ar, e assim uns entupimentos, e desde que os pombos andam aí que está pior». Diz outra, sabendo do extermínio: «Ah, mas nós não vamos ver, pois não?».)

 

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«As horrorosas caricaturas da morte», foi uma nota mental que um dia tomei para algumas imagens da Segunda Grande Guerra. Uma fórmula para esta deformação caricatural do horror encontrou-a Hannah Arendt em Eichmann e o Holocausto: «O horrível pode ser, não apenas ridículo, mas pura e simplesmente cómico». (H. Arendt nos fundos da Biblioteca do Congresso e na Virtual Jewish Library).

Esse horrível viu-o Alexander Sokurov plasticamente em «Sonata para Hitler», uma montagem de dez minutos de imagens da Segunda Guerra com notas estridentes de Bach e ecos de Penderecki. O lugar onde se podem buscar este e outros tesouros na Net é assunto de um próximo post. Muito em breve.

(Fotos dramapessoal: metro Rato, e igreja de S. João de Deus, Lisboa)