De volta aqui

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Regressar a este blogue foi regressar a dois dos blogues que nos fizeram descobrir o género, e continuamos a estimar e recomendar. Wood S Lot, que se mantém admiravelmente inalterado, e Spurious, em parte agora dedicado à notoriedade recente do seu autor Lars Iyer (ou da sua personagem W., que interpela o melindroso narrador do blogue, sem nome, e que nem mencionámos no nosso artigo preguiçoso ou displicente; blogue escrito, portanto, em drama).

Será estranho insistir no teatro, num momento de negação da razão de ser às artes públicas, e até à discussão pública, num momento em que é todos os dias declarado ser politicamente vantajoso não haver drama. Num momento de uma espécie de louvor da economia de sobrevivência, por oposição a uma economia de vivência – à imagem do passado Estado Novo, ou qualquer estado de união forçada. (No drama, tal qual o entendemos, o palco é um lugar formal dentro da grande cena; isto quando consegue ser esse outro lugar; a negação desse espaço só passa despercebida porque todo o outro espaço público já foi desertado.)

Mas o facto de o drama geral ter sido sempre tão raro aqui (tanto quanto o drama artístico é escasso e quase irrelevante socialmente), dá a esta saudação e pressão para a paz formal um carácter ainda mais intrigante. Causam o deserto e chamam-lhe paz – foi o que se disse das legiões romanas, no que, quanto a nós, descreve o espírito que presentemente invade.

Precisamos cá de gente

 

 

O jornal Público deu voz à indignação dos que querem vir todos os dias de carro para o centro de Lisboa, na ocasião do anúncio pela empresa municipal de estacionamento de que irá arrancar, ao fim de décadas, uma amostra de ordenamento e restrição do volume de trânsito no centro. As opiniões, como é costume entre nós, engarrafam todas no mesmo sentido. Em sentido contrário, e de temperamento perfeitamente estacionado, agradou-nos a opinião de Ramiro, de Tibaldinho, Mangualde:

 

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É pagar e acho muito bem. Se querem trabalhar na capital com salários melhores já têm condições para isso. Se não quiserem pagar venham para a minha aldeia, tem lugares com fartura, à sombra, e precisamos cá de gente.

 

Alguém tem de ser responsabilizado

 

 

Enquanto estivemos fora, o país mudou. Ontem mesmo, um casal e dois menores tiveram de ser realojados por causa de enxurradas. Parece que uma mulher também ficou ligeiramente ferida num choque em cadeia. Em Guimarães, uma pequena parte do tecto de um café ruiu, confirmando os piores receios de pelo menos um dos empregados. O rio Tua transbordou e cobriu um cais. Os patos tinham-no pressentido. Uma árvore de grande porte caiu em cima de uma casa, destruindo completamente um automóvel. No local, todos concordaram que alguém tem de ser responsabilizado.

 

 

Eu sou a minha mãe

 

Uma das fraquezas da ficção dramática popular, para além do maniqueísmo católico que racha a sua colecção de tipos básicos em dois grupos, os justos e os perversos (há um terceiro grupo, o dos figurantes, parte dos quais falam), é a falta de um elemento de escrita que no teatro romântico dava pelo nome de «grande deixa»: a tensão de uma cena resolvida numa fala, ou numa riposta a uma fala.

 

Prusik-Parkin

 

O novaiorquino Thomas Prusik-Parkin foi recentemente forçado a levar à cena da sua própria vida este recurso estilístico, e fê-lo com eficácia. Foi acusado de falsificação de documentos, fraude, uso de falsa identidade, e etc, depois de ter usado peruca, vestido, maquilhagem e óculos escuros para se fazer passar pela própria mãe, falecida em 2003, e poder receber, em nome dela, cerca de 115 mil dólares em benefícios sociais e subsídios de renda.

Quando foi preso, declarou às autoridades: «Segurei a minha mãe nos meus braços enquanto morria, e respirei o seu último suspiro. Portanto, eu sou a minha mãe».

 

via BBC NEWS

 

Insónia e marcha (caminhada nocturna)

 

caminhadanocturna

 

Nada indica que um QI relevante venha a fazer falta para as tarefas individuais e colectivas das próximas décadas.
Assim se entende a liberdade daqueles pais, que arrancaram as crianças às tocas dos arredores onde foram buscar a sua versão de modernidade e as trouxeram a contemplar em directo e ao vivo (expressão da tevê que um deles usava) o pátio das cantigas de papier maché e contraplacado.
Contámos uma dezena de cadeirinhas com bebés de boca aberta, às duas e meia da manhã, e dezenas de crianças embrutecidas de sono, numa volta relativamente curta, sempre a fugir às gentes.
Marchas populares. O nome serve melhor à marcha que vem assistir às marchas.
Um dos bebés trazia a cabeça cuidadosamente tapada com um pano, num exemplo de esmero educativo. Não queríamos ver aqueles rostos de tédio inconsolado, de mais uma festa falhada. Os mais encervejados gritavam de alegria. O tédio é um benefício do neocórtex, e frágil perante os psicoactivos, especialmente os mais económicos. Vinham sóbrios os que traziam crianças.

 

foto dramapessoal, tirada em rua isenta de festas

 

Ser-se Natural

 

«O ser-se natural é simplesmente uma pose, e uma das poses mais irritantes que conheço».

A entrada anterior poderia ter sido substituída por esta, do manuscrito de «Frases e Filosofias», que Oscar Wilde tanto apreciou que ofereceu ao seu Lorde Henry, de O Retrato de Dorian Gray. Curioso é como um princípio que opõe a verosimilhança cénica à «naturalidade» apareça sob a forma de uma regra de postura no convívio social, num fingimento que transforma a etiqueta na arte cénica por excelência, e, por implicação, todo o «realismo» numa falta de regra, ou quando muito, numa insolência simples. O que Wilde sabia bem, e alguns da cena fingem que não sabem, é que a representação dramática se move sempre, quer se queira quer não, num palco social mais-que-verdadeiro, sejam quais forem os efeitos oferecidos ao estimável público: a naturalidade é um preceito estético da classe-média, tanto quanto o teatro urbano português é uma arte de classe-média, e mais do que nunca quando não se toma como tal. E, já agora, nada há mais classe-média do que a ansiedade de verificar e medir a relação da arte com o dinheiro público. Nada mais propenso à imaterialidade e à fraude do que a mais-valia artística. Enfim, a classe-média, por definição, lida mal com imaterialidades: financeiras, estéticas, morais.

 

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Adeus Vasco Granja

 

Vasco Granja morreu anteontem de madrugada, com 83 anos. A arte do obituário é uma coisa patética, mas a morte de mais um educador artístico não deve deixar-se cair.

Durante anos, uma das polémicas artísticas deste país, talvez a maior, a que formou gerações, foi em redor da escolha de filmes de animação de V.G. para os seus programas: sobre se devia pôr no ar mais filmes da Warner Brothers, da série Looney Tunes, de montagem rápida, banda sonora estridente e humor de choque, ou se tinha o direito de insistir no material de outros mestres, como o checo Jirí Trnka, ou o canadiano Norman McLaren, entre tantos.

 

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Os filmes da Warner já tinham saída na transmissão corrente, e já tinham formado o gosto dominante, aquele mesmo que se alimenta dos filmes-de-acção & catástrofe-com-chacota de um Bruce Willis, ou infinitas variantes dessa variante. O próprio Vasco Granja brincava com a sede de muitos espectadores pelos brinquedos ruidosos, extraordinários, diga-se, mesmo quando apostavam no mecanismo tão televisivo da rotina cómica com estreita variação.

Mas até esses filmes caíram vítimas da psicologia popular de reacção piedosa à «violência» na tv. Nós aqui achamos mais violento que um champô prometa «biovitaminas», e «alimente» o tecido morto do cabelo directamente. Nós aqui só aprendemos com aquela que foi talvez a única sequência sem fuga histriónica de toda essa cinematografia, a famosa noite de insónia do gato Silvester/Silvestre, um momento de Kafka-para-todas-as-criancinhas, que o avô Granja apreciava especialmente.

Não sabemos se Vasco Granja morreu com a mesma sensação de dever cumprido de Mel Blanc, pai da voz de Bugs Bunny & outros, que deixou no seu próprio epitáfio a legenda final desses filmes: That’s All Folks! – ao mesmo tempo uma espécie de «manguito» existencialista.

 

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Mas sabemos que muitos lhe estão gratos como nós. Por ter aberto o ponto de vista, algo de que hoje a nossa televisão foge a sete pés (… eis uma figura animada). Porque, dizem os seus donos, «não têm nada que educar as massas». Nesta fórmula, que F.P. Balsemão usou, está escondido, curiosamente, o eco talvez involuntário de uma caricatura de Vasco Granja, vinda do tempo da guerra fria, de quando o divulgador era visto, sempre com uma bonomia pálida, como uma «espécie de embaixador dos países de Leste».

Por isso escolhemos agradecer especialmente a Vasco Granja a descoberta do insuspeito canadiano Norman McLaren, músico e desenhador, a cujos filmes sonoros, baseados exactamente no mesmo princípio jazzístico dos Looney Tunes, dedicámos uma parte do dia de ontem. No Youtube é possível ver o enérgico «Sinchronomy», bem como «Sinchronomy on Mars» ou «Lignes Verticales/Lines Vertical».

 

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Imagens do filme «Synchronomy», de Norman McLaren.

 

Pausa de domingo (a ler Karl Kraus e a ouvir Dean Martin)

 

Prússia: liberdade de movimentos, com uma mordaça. Áustria: confinamento solitário, com permissão para gritar.

Schiller punha maçãs podres na secretária, para inspiração dramática. Desde então, os públicos da Alemanha têm medo de usá-las como arma.

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A prostituição decente depende da crença na monogamia.

Para o filisteu, a arte é um trajo vistoso para a rotina e os problemas do dia-a-dia. Deita a língua de fora aos ornamentos como o cão às salsichas.

As donas dos bordéis são as guardiãs da regra social.

A vida industrial abre estradas à poesia interior que os jardins artísticos afogam.

 

 

 

trad. dramapessoal

A Farmácia Albano

 

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Os donos da Farmácia Albano não quiseram arrancar os móveis seculares, mais os tectos e os candeeiros, que a empresa renovadora e respectivo arquitecto queriam destinar ao contentor. Não forraram o pequeno estabelecimento a espelhos e contra-espelhos, lâminas de luz e azulejos com enfeites nacarados, e efeitos de cor, como as manchas de óleo na água. Ou com cenografia técnica repetível e desmontável. Tudo é desmontável, enfim, mas agora a Farmácia Albano não é igual a mais duas pastelarias da zona, também esventradas da sua memória, como dos seus melhores hábitos, ou a uma farmácia num desses lugares mal acabados que ainda não existem, e, tudo indica, nunca chegarão a existir.
Na foto, aro de ferro para apoio de toldo sobre placa de parede em mármore. Rua da Escola Politécnica, Lisboa. Note-se a luz branca deste Dezembro do Norte.

 

foto dramapessoal