De volta aqui

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Regressar a este blogue foi regressar a dois dos blogues que nos fizeram descobrir o género, e continuamos a estimar e recomendar. Wood S Lot, que se mantém admiravelmente inalterado, e Spurious, em parte agora dedicado à notoriedade recente do seu autor Lars Iyer (ou da sua personagem W., que interpela o melindroso narrador do blogue, sem nome, e que nem mencionámos no nosso artigo preguiçoso ou displicente; blogue escrito, portanto, em drama).

Será estranho insistir no teatro, num momento de negação da razão de ser às artes públicas, e até à discussão pública, num momento em que é todos os dias declarado ser politicamente vantajoso não haver drama. Num momento de uma espécie de louvor da economia de sobrevivência, por oposição a uma economia de vivência – à imagem do passado Estado Novo, ou qualquer estado de união forçada. (No drama, tal qual o entendemos, o palco é um lugar formal dentro da grande cena; isto quando consegue ser esse outro lugar; a negação desse espaço só passa despercebida porque todo o outro espaço público já foi desertado.)

Mas o facto de o drama geral ter sido sempre tão raro aqui (tanto quanto o drama artístico é escasso e quase irrelevante socialmente), dá a esta saudação e pressão para a paz formal um carácter ainda mais intrigante. Causam o deserto e chamam-lhe paz – foi o que se disse das legiões romanas, no que, quanto a nós, descreve o espírito que presentemente invade.

Um lavatório verdadeiro

 

 

As generalidades mais instrumentais, tal como Goebbels já sabia, contaminam a realidade e instituem-se em verdade pela repetição. O princípio segundo o qual «Os portugueses vivem acima das suas possibilidades» é dos que ganharam certeza própria. Nesta foto de um apartamento «totalmente remodelado» para arrendar (T0, arredores de Lisboa), vemos que o inquilino à data da publicação do anúncio dispõe, nada mais nada menos, de três escovas de cabelo, para além de um pente. Se é demagógico supor que num T0 viverão mais do que um ou dois ocupantes, ainda assim pelo menos uma escova e um pente, ou duas escovas, ou no mínimo uma delas, estão em excesso. Também parece haver um consumo excessivo de papel higiénico.
À parte a nota sociológica, um pormenor de interesse artístico está nos dois frasquinhos, um laranja-vivo e outro verde, postos lado a lado junto ao frasco de sabonete redondo exactamente pelo mesmo critério harmónico que pôs os dois copos quadrados de loiça antes do copo redondo, da esquerda para a direita.

 

As Massas Construídas

 

 

Teimosamente, continuámos a investigar as fotos da Avenida de Roma passada. A variedade não nos ocupa neste momento.

Tanto os doutores planeadores e empreendedores como os modestos plantadores de prédios acima, todos são anónimos hoje numa fotografia. Moveram massas de terra e ergueram massas de betão que mal nos ocupam a memória imediata.

 

 

Estamos habituados, não precisamos de notar ou sentir o percurso dos prédios no tempo, mais lento que o nosso, mais duradouro. Mas eis a delicada silhueta feminina na varanda, perto do alto poste de madeira provisório. Talvez dure um pouco mais que as massas construídas.

 


 

Gravado a lápis para sempre

 

 

Na semana passada, um amigo achou um escrito de António da Silva Teixeira Electricidade que esta noite faz dezanove anos. Um feito notável, para um escrito a lápis numa parede de um prédio igualmente parado no tempo, na Rua Rodrigues Sampaio. O tema é denso, talvez captado na imprensa internacional à mostra pelas ruas, ou captado, simplesmente. São modestas, as nossas alegrias.

 

Dias de sol dos antigos

 

 

Os noticiários televisivos locais repetiram o truque publicitário da Amazon.com, que divulgou ter vendido, pela primeira vez, mais livros digitais que livros de capa dura. Os jornalistas portugueses saltaram imediatamente para a conclusão de que o papel morreu. Lessem mais papel e saberiam a diferença entre hardbacks e paperbacks. A Amazon quer vender Kindles, e os jornalistas, tal como disse Salvador Dalí a um jornalista português, querem ser mais Dalí que Dalí.

 

Temos estado ocupados. Não fomos indiferentes à agitação política que mudará este país, bem expressa nos abaixo-assinados e movimentações contra o pagamento de estradas prontas e acabadas, nunca questionadas, ou nas duas ferozes manifestações contra a transferência de dois padres.
Corremos departamentos da Segurança Social e das Finanças para resolver uma questão com o Estado. Uma semana de lento progresso, enquanto em Israel se discutia o destino dos papéis de Kafka. O recorde de espera foi o do dia 22: 5 horas no balcão do Saldanha da Segurança Social.
Na chamada Secção de Processo, na Praça de Londres, o chamado beneficiário (os independentes não beneficiam de nada) tem de ficar em pé diante de um balcão de um palmo e três dedos de fundo por três palmos de largura para dispor o seu caso em papéis, com um mínimo de dez pessoas em redor a ouvirem a narrativa dos seus erros ou pedidos.
Uma ideia simples, que proporciona fluidez no atendimento.

 


As pressões do absurdo burocrático que assola os trabalhadores independentes das artes fomos aliviá-las no último piso do centro comercial Acqua, na Avenida de Roma, cuja zona de restauração está rodeada por fotografias da avenida, dos tempos em que o sol mandava e os carros obedeciam.

 

Em cartaz, já sob a sombra de A Sede do Mal, o filme Nathalie [Agente Secreta], de Henri Decoin, 1959, com Martine Carol, a quem só Brigitte Bardot veio ocultar.

 

[fotos em exibição na zona dos restaurantes e na página online do centro]

 

Choque tecnológico (fotos de Andrew McConnell)

 

 

da série «Rubbish Dump 2.0», fotografias de Andrew McConnell

via Wood S Lot

 

Pelo olhar de formação jornalística de A. McConnell vamos ver o que está debaixo de um dos tapetes da civilização: as lixeiras de objectos electrónicos como a de Agbogbloshie, no Gana, onde crianças e jovens «trabalham» a queimar cabos e peças de computadores para revenda dos metais e algumas peças úteis. Algumas destas crianças fabricam os seus «Magalhães», mas têm de tentar vendê-los.

 

Azuis e Verdes Molhados

 

 

Reuniram em Guimarães, lugar desta foto, tirada meses mais tarde (há três dias). Alertaram com horror contra a divulgação nas escolas da entidade que designam por «sexo sem afectos», o que nos parece fazer alusão a uma forma de aproximação que custosamente muitos de nós temos tentado apurar, nem sempre com contentamento das partes, mas com os seus altos momentos de gratificação não susceptíveis de partilha verbal, muito menos social (curiosa, a conotação ascensional do adjectivo «altos»). Todavia, os que reclamam nunca fazem uma lista minimamente detalhada desses tais afectos que favoreceriam e sublimariam o contacto genital, que nem sequer os preocupará para toda a eternidade. Esse exercício, se bem que bastante interessante, parece-nos complexo, algo arriscado, mesmo para a imaginação livre, a qual, seja como for, não cultivam. Reclamam a sempiternidade do magistério católico, um fenómeno do século XIX, afinal.
Segundo Diarmaid MacCulloch, como já foi muito visto, a cristandade cauciona a posição social do macho heterossexual no quadro social ainda em vigor, assegurando-lhe as posições de liderança incontestada e respectiva escala hierárquica à imagem da Igreja. Parece que a ansiedade renovada deste tipo de conservadorismo cristão e «familiar» mais agressivo tem afinal raiz numa deslocação tectónica de toda a paisagem dos papéis sexuais.
Uma deslocação pouco sensível numa cidade de azuis e verdes molhados aprazivelmente limpa e semi-morta como Guimarães.